Esquecer objetos e informações importantes parece ser uma característica intrínseca ao dia-a-dia de uma sociedade moderna. Lidamos com um volume tão grande de estímulos, mesmo em um dia comum, que parece termos deixado de sonhar com o cultivo de uma memória mais eficiente.
Contudo, o que parece trivialidade do dia a dia — como procurar onde colocamos as chaves — desenvolve uma outra dimensão quando os efeitos são analisados ao longo do tempo. Em uma pesquisa feita na Inglaterra, a média de tempo gasto procurando por objetos perdidos foi 10 minutos ao dia (um número razoável), que se somam em 60 horas por ano. Isso são dois dias e meio perdidos somente procurando por objetos perdidos.
E não se trata apenas do tempo perdido: a qualidade de vida cai, já que o esquecimento gera estresse e destrói qualquer bom humor. O que fazer para lidar com isso? Afinal de contas, não é um problema previsível: o normal é a memória funcionar, até que ela falha nos momentos mais inesperados, normalmente quando você está com pressa para algum compromisso importante.
Para desenvolver uma memória eficiente para o dia a dia, vou propor dois exercícios simples a seguir. Mas, antes disso, vamos entender como a memória funciona e por que você costuma esquecer onde coloca as coisas.
Entendendo o funcionamento da memória
Há várias teorias que visam a explicar o funcionamento da memória humana e suas particularidades. Uma das mais bem aceitas propõe o modelo multimemória, proposta pela primeira vez em 1968 por Richard Atkinson e Richard Shiffrin. De acordo com esta formulação, possuímos alguns tipos de memória, que são diferentes em termos de duração e capacidade de armazenamento.
O primeiro tipo é a memória sensorial, que funciona como uma ponte entre nós e a realidade. Ela é uma pequena região onde nossos sentidos mantêm um grande volume de informações antes de filtrá-las para a região de nossa atenção consciente.
Já a memória de curto prazo, também chamada de memória de trabalho, é mais complexa. Ela está diretamente relacionada com nossa consciência sobre as coisas e com nosso foco de atenção. Com uma capacidade bem limitada, mantém apenas entre 5 e 9 itens (informações, imagens, estímulos) ao mesmo tempo, menos ainda se forem itens novos (previamente desconhecidos).
Isso explica o porquê de esquecermos coisas irrevogavelmente quando elas escapam de nossa atenção ao sermos distraídos. Por exemplo, quando você está numa ligação, tentando memorizar um número que o interlocutor está passando e alguém o interrompe, você se esquece completamente do número. O foco de atenção mudou, a informação se foi, já que o caráter da memória de trabalho é temporário.
A memória de longo prazo, por sua vez, é o espaço de armazenamento permanente. Não há limitações conhecidas para esse tipo de memória, já que é impossível desenvolver algum teste para estabelecer seus limites. As evidências até apontam que quanto mais absorvemos, mais fácil se torna o processo de absorção.
O que levanta a pergunta: por que, então, esquecemos coisas bobas o tempo inteiro no dia-a-dia?
Ter memória ilimitada não resolve tudo
Uma maneira comum de compreender o funcionamento de nossa memória é compará-la àquelas presentes nos computadores. O HD da máquina seria equivalente a nossa memória de longo prazo e a memória RAM do computador, à de curto prazo.
Enquanto que a comparação nos ajuda a entender os tipos, ela não é válida quando discutimos a natureza das memórias.
Guardar informações nos computadores é algo procedural, com endereços de memória envolvidos e localizações definidas a serem buscadas. Em outras palavras, o processo foi desenvolvido a fim de otimizar o depósito e a retirada de informações a qualquer momento. Por isso, ao usar a máquina, você não tem problema ao procurar seus arquivos: eles estão em lugares bem determinados no hardware do equipamento, bastando ser acessados.
Por outro lado, o cérebro humano é algo mais errático. O armazenamento de nossas informações não foi desenvolvido tendo a otimização como objetivo, mas criado de modo aleatório por mutações genéticas e seleção natural ao longo de milhares e milhares de anos. Por isso, embora tenhamos um espaço virtualmente ilimitado na mente para guardar coisas, o uso é limitado por dois fatores:
- A forma como inserimos informações na memória de longo prazo
- A forma como as retiramos
Adicionar informação ao HD de um computador é apenas uma questão de “escrever” os bits correspondentes nos endereços adequados. Em nossa mente, além de usarmos um sistema de encodamento diferente (baseado em schemas), para guardar algo de forma duradoura, é preciso transferir o conhecimento da memória de curto prazo (que dura apenas alguns segundos) para a de longo prazo. Enquanto que há vários modos de fazer isso, todos eles requerem algo escasso hoje em dia: atenção.
Se você não usa atenção durante a memorização, suas chances de lembrar o que deseja mais tarde são irrisórias. E ainda que você guarde o conteúdo por acaso (já que não tem atenção), como fará para recordá-lo? É como guardar algo dentro do mar: você sabe que está ali, mas não possui uma maneira clara para recuperar o que depositou.
Esse é o segundo problema com a memória de longo prazo: não há um mecanismo nativo de busca. Nossas memórias são baseadas em schemas, que são pequenos mapas da realidade. Você tem schemas para representar um celular, outro para um automóvel, outro para uma fruta. Conforme as ideias ficam complexas, novos schemas são criados baseados nos esquemas anteriores, utilizando estes como pilares.
Lembramos quando nos deparamos com situações ou objetos similares ao item guardado. Alguns estudos até mostram como é mais provável que você lembre-se de algo se estiver no mesmo contexto onde guardou a informação. Se você deixou sua chave no bar enquanto se servia de um drinque, por exemplo, é mais provável que você lembre-se disso no próprio bar ou ao enxergar seu filho bebendo Coca-cola do que quando estiver jogando videogame.
Esse modo quase aleatório baseado em familiaridade, contextos e referências, não nos parece útil hoje, mas servia bem aos nossos ancestrais. A maioria de nossa história evolutiva envolve caça, vida em florestas e perigos constantes. Ser capaz de lembrar mais informações sobre leões, que eram ameaças persistentes à vida em uma savana, era mais útil do que lembrar algo sobre algum animal aleatório com o qual pouco nos deparávamos.
De certo modo, é para isso que algumas técnicas mnemônicas foram desenvolvidas: contornar esse problema de depósito e retirada de informações. Esse tipo de técnica serve como pontos de referência para auxiliar na busca, “bóias em cores berrantes e que fazem muito barulho” amarradas aos itens que você guardou ao mar, embora do jeito que foram popularizadas, funcionem melhor em contextos específicos (memorizar cartas de baralho, números aleatórios e afins).
Você esquece as coisas porque não usa a cabeça. Literalmente.
Há outro motivo pelo qual você nunca lembra onde coloca as chaves. Talvez seja surpresa, mas você literalmente não está usando a cabeça enquanto guarda as chaves na gaveta, no banheiro ou as deposita no congelador (certa vez a minha estava lá).
Tentar lembrar onde está a chave (ou o celular, ou os óculos) não é uma tarefa de memória, mas uma questão de hábito. Toda vez que você entra em casa, abre a porta e larga a chave em cima da cômoda. Ou quando você chega no quarto com o celular na mão, você joga perto do travesseiro e se deita. A posição desses objetos é uma questão de hábito, não de memória.
Enquanto o gatilho do hábito (abrir a porta ou chegar no quarto) não for alterado significativamente, você vai jogar a chave e o celular no mesmo lugar. Quando for procurar, você checa no lugar de sempre, também por hábito. O problema acontece quando algo interfere no gatilho.
Digamos que você entra em casa e se assusta com uma festa surpresa. O processo gatilho -> hábito é interrompido, porque a surpresa faz você andar para frente e abraçar sua namorada, ao invés de se virar e jogar a chave. Ou digamos que você chega no quarto e quando vai se deitar, nota que o gato fez o número 2 perto do travesseiro, então não joga o celular na cama, mas dentro de uma bolsa aberta que estava por perto (e sai para limpar).
Qualquer situação que interrompa o gatilho impede o hábito de acontecer, o que torna difícil encontrar o objeto depois, já que você não estava prestando atenção (o que não promove formação de memória duradoura).
A execução de hábitos é comandada por uma área do cérebro chamada gânglios basais, uma das estruturas mais antigas, responsáveis por comportamentos automáticos e instintivos. No livro O Poder do Hábito, há uma discussão interessante sobre certo estudo feito com o cérebro de ratos em um ambiente controlado.
Os cientistas do MIT colocaram os animais em um caminho fechado simples, com uma porta no início. Ao ouvir o clique para abertura da porta, os ratos começavam a caminhar em busca da comida que estava escondida ao final do corredor. Analisando o cérebro dos ratos enquanto eles seguiam no processo, os cientistas notaram como a atividade cerebral diminuía com o tempo, indicando uma automatização do processo.
Ao longo do tempo, conforme o hábito vai se formando com a repetição da rotina, a atividade geral diminui durante a execução, embora os picos nos extremos continuam. Eles equivalem ao momento em que o cérebro do rato identifica que a rotina referente ao hábito deve ser executada, o gatilho, e o momento em que o rato encontra a recompensa.
Como eles já desconfiavam que os gânglios basais, presentes na região central do cérebro, tinham relação com comportamentos automáticos apresentados por animais. Então, durante o experimento, eles rastrearam a atividade cerebral geral e a atividade nessa área em específico.
O resultado? Durante a execução da rotina do hábito (correr atrás da comida dentro do labirinto), a atividade cerebral do rato diminui, enquanto a atividade dos gânglios basais aumentam. Ao sair da nossa atenção “consciente”, os hábitos passam a ser controlados por uma das regiões mais primitivas do cérebro.
Esse resultado é uma das bases do livro do Charles Duhigg e ele segue a discussão sobre manipulação de gatilhos e recompensas a fim de criar novos hábitos. O que esse estudo importa para nós, no entanto?
Ele mostra como, em situações comuns do dia-a-dia, não estamos prestando atenção, nem ao menos usando a cabeça (nosso cérebro consciente) enquanto depositamos o objeto que daremos por perdido logo em seguida.
Por isso, torna-se uma tarefa hercúlea lembrar onde o colocamos – a menos que nos lembremos da situação que alterou o gatilho do hábito e reconstruamos nossos passos, mas isso não é o mesmo que lembrar onde o pusemos.
O que fazer, então, para se lembrar das chaves?
A sugestão é óbvia, ainda que pela razão inesperada: compre um chaveiro.
Não para que sua casa fique mais organizada sem as chaves espalhadas pela sala, mas para que você fortaleça o hábito de sempre as colocar no mesmo lugar. Mesmo diante de uma interrupção significativa no gatilho, se o hábito é forte o suficiente, você vai colocar a chave no lugar certo. É só uma questão de ter o chaveiro e praticar.
(Substitua chave/chaveiro por qualquer objeto que você perca com frequência. Escolha um lugar fixo, de preferência óbvio, e coloque-o sempre lá.)
Como eu disse no começo do texto, tenho dois exercícios simples para diminuir a taxa de esquecimento de objetos.
- Diga em voz alta onde você colocou o que você não quer perder. Chegando em casa, diga “vou colocar a chave em cima da estante” e coloque-a lá. É algo extremamente simples, cujo objetivo é direcionar o foco para a ação – em vez de ser um hábito que você faz sem pensar – e fornecer para sua mente mais uma referência sobre o local da chave – o áudio da sua própria voz descrevendo a ação.
- Coloque a chave no lugar e imagine como seria se ela crescesse até ficar do tamanho da sua cabeça, fincasse as “patas” na superfície em questão (sofá, cômoda, estante, o que seja) e começasse a rugir bem alto para você. Imagina que situação bizarra? Enxergue mesmo a situação de modo vívido, “ouça” o rugido da chave e deixe a imagem preencher sua mente.
Esse exercício simples baseia-se na descoberta que nossa memória para imagens é muito boa (chave querendo mordê-lo), melhor do que para informações (onde está a chave). Criar imagens com proporções incomuns e comportamento engraçado ajuda no processo, pois diferencia das imagens ordinárias do dia-a-dia, sendo inclusive a base de todos os sistemas de memórias utilizados em competições.
A má notícia é que não há mais desculpas para quando você esquecer o controle remoto no congelador. Não é que você seja esquecido ou não saiba o que está acontecendo: saber claramente a posição dos objetos e economizar 60 horas de vida por ano está ao seu alcance.
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Parabéns pelo texto,muito bom mesmo!
Parabéns, texto bem embasado, com bastante referências!